Os Caminhos da Produção Agrícola
ELEIÇÕES
Um panorama da questão agrária no Brasil e o que esperar nos próximos anos para a democratização das terras
O Estatuto da Terra, sancionado em novembro de 1964, define como reforma agrária “o conjunto de medidas que visem promover a melhor distribuição da terra, mediante modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social e ao aumento de produtividade.”. Em tese, um plano de reforma agrária democratiza o acesso à terra (ao dividir os espaços de plantio entre mais produtores), aumenta o seu aproveitamento e volta a produção agrícola ao mercado interno.
Controlada pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) desde 1970, o sistema adotado para realizar a reforma da estrutura fundiária em território nacional é o de desapropriação seguida pela aquisição de grandes propriedades que não cumprem sua função social (chamadas, por definição, de “latifúndios” ou “terras improdutivas”) com pré-requisitos estabelecidos pelo Art. 186 da Constituição. Após a obtenção dessas terras, o Incra forma assentamentos, conjuntos de pequenas unidades agrícolas chamadas de “lotes”, onde são instaladas famílias que não teriam condição de adquirir e manter um imóvel rural.
Assentamento rural na cidade de São João da Barra. Foto: Reprodução/Jornal Opção
As famílias que podem receber um lote são aquelas que não possuem qualquer porção própria de terra ou cuja propriedade não ultrapasse um módulo rural do município. Após o lote ser entregue, a família assentada deve utilizá-lo para sustento próprio e, até que possuam sua escritura, ela estará ligada ao Incra, sem poder negociar a propriedade.
Entre 1964 e 1984, a discussão sobre a reforma agrária sofreu uma espécie de congelamento. No período da ditadura militar, foi proposto um modelo de desenvolvimento agrícola baseado no agronegócio, com incentivos fiscais para as grandes propriedades e repressão contra os trabalhadores rurais.
Com a redemocratização, o debate acerca da questão agrária foi retomado. A partir desse período, o Brasil passou por dois planos de reestruturação agrícola, o primeiro durante o governo de José Sarney, sem alcançar grandes resultados; e o segundo durante os dois mandatos do ex-presidente Lula, que realizou maiores avanços no assentamento de terras improdutivas. Durante os oito anos em que o petista governou, cerca de 600 mil produtores foram beneficiados por seu programa de reforma agrária.
Mas mesmo alcançando um índice considerável de famílias assentadas, o governo Lula não foi capaz de frear a expansão latifundiária, e os imóveis improdutivos com terras acima de mil hectares aumentaram em quase onze mil entre 2003, quando Lula assumiu, e 2010, ano em que sua sucessora Dilma Rousseff foi eleita, segundo dados do próprio Incra, analisados por Gerson Teixeira, ex-presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária, em dissertação publicada em 2011.
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Ainda que o já mencionado Estatuto da Terra estabeleça em seu texto que visa “...a gradual extinção do minifúndio e do latifúndio”, o aumento da concentração de terras é consequência direta de um modelo de assentamento que premia o grande proprietário, que ignora as funções sociais estabelecidas na Constituição. No ato da aquisição dos lotes, os donos de imóveis improdutivos recebem o preço da terra, de acordo com o valor de mercado, mais a quantia de 12% em juros ao ano, contados a partir da desapropriação da posse até o pagamento integral da indenização, garantindo ao latifundiário, de maneira muito mais segura (uma vez que a agricultura está sujeita a riscos de natureza meteorológica), um lucro que dificilmente teria com a atividade agrícola, considerando sua produção nula ou abaixo da capacidade.
A quase inexistente fiscalização da atividade latifundiária no Brasil também contribui para o mau aproveitamento dos hectares disponíveis. Em entrevista para a Carta Capital, o ativista da Comissão Pastoral da Terra, Edmundo Rodrigues, afirma que a expansão dos grandes proprietários não se dá pela compra de terras, mas sim pela exploração daquelas que estão sob proteção ambiental, de áreas indígenas, através de cooptação (acordo sem interferência de órgão externo regulador) de pequenos proprietários e até mesmo pela falsificação de documentos de terras pertencentes ao Estado.
A necessidade de uma verdadeira reforma agrária
Em suma, o sistema de redistribuição dos espaços para a produção agrícola no Brasil sequer deveria ser chamado de reforma agrária, uma vez que não é capaz de democratizar por completo o direito do trabalhador à terra, ou acabar com as grandes propriedades que pouco geram para o mercado interno. Os assentamentos promovidos pelo Incra praticamente cessaram após os governos Lula e, ainda que carreguem certa importância, representam apenas ações pontuais que, sozinhas, não serão capazes de modificar a estrutura agrária do país.
Como alternativa às políticas pouco efetivas, há programas como o de Reforma Agrária Popular do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), que busca unir os trabalhadores rurais e construir comunidades no campo, envolvidas com os grandes centros e voltando sua produção para as necessidades da população brasileira, de forma sustentável e sem uso intensivo de agrotóxicos.
Ato do MST em memória ao assassinato de 19 camponeses em Eldorado dos Carajás, em 1996. Foto: Reprodução/Globo Rural
Propostas como a do MST vão ao encontro da necessidade urgente de tornar a produção agrícola um instrumento que supra as demandas da população brasileira, em detrimento do agronegócio, que visa a exportação e o enriquecimento de poucos. As razões para aderir a um modelo baseado na agricultura familiar não se sustentam apenas em pautas humanitárias de acesso à terra, combate à miséria e desigualdade no campo, também tangem a esfera econômica e de desenvolvimento do país.
A agricultura familiar produz a maior parte do alimento consumido pelos brasileiros, e sua expansão significaria não só o aumento da oferta interna, como também a desvinculação do preço destes produtos com o mercado externo, facilitando o controle da inflação e atendendo a demanda populacional.
Mas mesmo com pretextos tão evidentes para se apostar na reestruturação da produção agrária no Brasil, as previsões para os próximos anos não são otimistas, especialmente se observarmos a queda dos investimentos ligados aos projetos de reforma agrária do Incra, que passaram de 490 milhões repassados em 2014, para os 80 milhões do último ano do governo Temer. Outro ponto que não parece contribuir para o avanço da questão agrária é a cada vez mais influente presença da bancada ruralista no Congresso.
Reforma agrária nas eleições
Entre os representantes que disputam a presidência para a gestão que se iniciará em 2019, o cenário também não é tão animador. Dentre os 13 candidatos, apenas Fernando Haddad (PT), Guilherme Boulos (PSOL), Vera Lúcia (PSTU) e João Goulart Filho (PPL) citam os termos “reforma agrária” em suas propostas de governo divulgadas no site do TSE. Haddad reafirma as políticas de assentamento que tiveram destaque durante os dois mandatos de Lula, enquanto Vera Lúcia advoga por uma reforma radical, sem detalhar, porém, os meios para atingi-la.
Os que apresentam maiores articulações sobre o tema são Boulos e Goulart Filho (cujo pai, ex-presidente na década de 1960, foi deposto pelo golpe militar menos de um mês depois de discursar a favor da reforma agrária). Enquanto Goulart retoma o plano de Jango de plena democratização da terra, o candidato do PSOL baseia sua política agrária nas diretrizes da Reforma Popular proposta pelo MST.
Ciro Gomes (PDT) e Marina Silva (REDE), ainda que sem citar diretamente a reforma em seus programas de governo, apresentam diferentes propostas para o fortalecimento da agricultura familiar, como a destinação de recursos ao PRONAF (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar), no caso de Marina, e o fortalecimento de empreendimentos e coletivos ligados ao pequeno proprietário, no caso de Ciro.
Candidatos como Álvaro Dias (PODEMOS), João Amoêdo (NOVO), Henrique Meirelles (MDB), Jair Bolsonaro (PSL) e Geraldo Alckmin (PSDB) expressaram apoio ao agronegócio. Em agosto, numa sabatina com grande presença de ruralistas, Alckmin defendeu a reintegração de posse no caso de ocupações de terras ociosas. Já Bolsonaro, em seu programa de governo, afirma que pretende revogar a Emenda Constitucional Nº 81, responsável pela desapropriação de grandes imóveis que apresentem trabalho escravo.