top of page

Politização da ajuda humanitária

Gabriel Caldeira

Doações recolhidas por EUA e Brasil são enviadas com base em interesses políticos e econômicos

 

Com a morte de Hugo Chávez, seu então vice-presidente Nicolás Maduro assumiu a presidência da Venezuela em março de 2013, sendo formalmente eleito em pleito realizado um mês depois. Desde o começo de seu primeiro mandato, Maduro lida com pressões internas, o fortalecimento da oposição e a insatisfação popular, que culminou nos resultados da última eleição presidencial do país, em maio do ano passado. Apesar de reeleito, cerca de 54% da população venezuelana se absteve da votação, e diversos países juntaram-se à oposição, não reconhecendo a legitimidade de seu governo. A crescente pressão internacional aprofundou ainda mais os contornos políticos da crise no país, que até então tinha caráter majoritariamente socioeconômico.


A partir da reeleição de Maduro, a Assembléia Nacional da Venezuela passou a ser um relevante símbolo da oposição. Juan Guaidó, seu atual presidente, afirmou logo após ser empossado no novo cargo que a Assembléia “é a única representação legítima do povo”, reafirmando a suposta ilegitimidade do governo federal. O discurso, que ocorreu no dia 5 de janeiro deste ano, serviu como uma prévia do que ocorreria no dia 23 do mesmo mês, quando Guaidó se autodeclarou presidente interino da Venezuela, recebendo apoio quase imediato dos EUA, Canadá, União Européia e países sul-americanos como Brasil, Colômbia, Argentina e Chile.


Como estratégia para a renúncia de Nicolás Maduro, a comunidade internacional passou a se movimentar para aumentar a pressão e impor ao governo espécie de cerco político e econômico. Nesse processo, doações que foram chamadas de “ajuda humanitária” começaram a ser enviadas pelos EUA para a Venezuela no dia 4 de fevereiro, ação que foi reproduzida pelo Brasil. Com medo de interferência política, Maduro barrou a passagem das doações.


O envio de mantimentos por parte de Brasil e EUA reacendeu o debate acerca da politização da ajuda humanitária, prática que não segue as determinações da resolução A/RES/46/182 da Organização das Nações Unidas de 19 de dezembro de 1991. Segundo esse documento, para ser considerada humanitária, esse tipo de assistência deve ocorrer de forma independente, sem a influência de cenários políticos, e neutra, sem assumir posição em relação às partes numa situação de conflito. Também só deve ser realizada através de pedido formal do governo legitimado de um país em situação vulnerável.


Bloqueio feito pela polícia venezuelana na ponte Francisco de Paula em Santander, fronteira com a Colômbia. O uso do símbolo da Cruz Vermelha por um manifestante foi criticada pela entidade. Foto: Reuters. Reprodução/Nexo Jornal


Além dos pilares estabelecidos pela ONU e reiteradas por organizações como o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, uma ação de ajuda humanitária não compreende apenas o envio de mantimentos, como explica a biotecnóloga Consuelo Giménez Pardo, em artigo publicado no portal The Conversation e traduzido pela Brasil de Fato: “Implica não só a provisão de produtos e serviços básicos para a subsistência, mas também, especialmente em situações de conflito, a proteção das vítimas e seus direitos fundamentais através do trabalho na defesa dos direitos humanos (advocacy), o testemunho, as demandas, a pressão política (lobby) e o acompanhamento.”


Questiona-se, também, a real necessidade de assistência estrangeira, pois apesar do país passar por grave crise financeira, no relatório de 2019 do Inform, ferramenta gerenciada por diversas entidades globais que busca calcular a chance de um país sofrer uma crise humanitária, a Venezuela aparece com um índice de 0,45, abaixo da Colômbia, que apoia os EUA na passagem das doações e apresentou índice de 0,55. Todos os resultados e indicadores usados no levantamento podem ser conferidos nesta planilha.


Como saldo da insistência da oposição em fazer entrar as doações na fronteira venezuelana, conflitos entre a população e o exército fiel a Maduro ocorreram no último sábado (23), o que provocou a morte de três civis na cidade de Santa Elena do Uairén, divisa com o Brasil. A estratégia da oposição era de que, ao forçar a entrada dos suprimentos, os militares cedessem, declarando apoio a Juan Guaidó, o que supostamente aceleraria a renúncia de Maduro.


Leia também:


Anteriormente, a delegação norte-americana da Cruz Vermelha alertou o governo dos EUA sobre o risco de possíveis conflitos ao entregar ajuda humanitária à Venezuela sem o consentimento das autoridades militares. Sem ouvir as recomendações, o assessor de segurança nacional dos EUA John Bolton à época afirmou que Washington prosseguiria de acordo com “o pedido de Juan Guaidó, em consulta com seus oficiais”.


Somando-se às recentes intervenções, os EUA protagonizam disputas econômicas com a Venezuela há pelo cinco anos, quando as primeiras sanções foram impostas pelos norte-americanos contra funcionários venezuelanos que haviam violado direitos humanos contra manifestantes, em 2014.


A relação se agravou de fato quando o governo estadunidense aplicou novas sanções, dessa vez à petrolífera estatal da Venezuela, a PDVSA, diminuindo consideravelmente a exportação do petróleo, maior fonte de renda do país. Essas medidas se estendem até hoje como forma de pressionar o governo de Nicolás Maduro.

 Siga o INCULTURA: 
  • Curta nossa página no Facebook!
  • Siga nosso perfil no Instagram!
  • Siga-nos no Twitter!
 POSTS recentes: 
 procurar por TAGS: 
bottom of page