A identificação para as pessoas transexuais na voz de Danna Lisboa
A cantora contou ao InCultura como se sente sendo espelho para trans e travestis
Façamos um exercício mental de empatia, nos colocando no lugar de uma mulher negra, periférica, transexual, e sem referências artísticas quando mais nova. A trajetória de Danna Lisboa, cantora de rap que traz em suas letras o combate à transfobia, demonstra que o seu empoderamento e sucesso vieram aliados a muita luta e resistência.
No início, muitos obstáculos surgiram no caminho de Danna, após não receber a aceitação de sua família sobre ela ser trans. "Fiquei 3 anos morando em lugares variados. Depois que uma galera me ajudou alocando um espaço pra mim em uma pensão. Me deram muita força". Nesse período Danna passou a fazer apresentações em boates, ainda com o nome artístico "Danna Black". Ela conta que participava também de concursos de drag queens: "ganhei alguns concursos, como o “Drag Danger”, concurso de drags da boate Danger Dance Club, entre outros".
Danna Lisboa durante show no evento "Grafitaço com Quintesia", 08/10/17. Foto: Vinícius Barboza
Em 2006, Danna deixa de fazer os shows na noite paulistana, começa a entrar em contato com a dança e passa a frequentar espaços culturais. "Antes eu já escrevia, e comecei a frequentar lugares como o Centro Cultural da Juventude, participar de saraus, recitar minha poesia, cantar músicas, viver os meus sonhos". Atualmente ela dá aulas em oficinas de vários estilos de dança, como o voguing.
Mas somente há dois anos ela iniciou sua carreira como rapper, lançando as canções que já compunha. "Minha primeira música foi o single 'Trinks'. Depois veio 'Cidade Neon', composta em 2004, em uma fase complicada da minha vida, em que eu havia me separado do meu ex-marido, estava desempregada e me prostituindo".
"É engraçado que 'Ideais' é uma música que eu compus bem antes desse momento que estamos vivendo, envolvendo a 'cura gay', e a letra fala 'Nossa liberdade condenada como uma doença'"
A cantora conta que após lançar o clipe de "Trinks", participou de dois filmes, sendo um deles o clipe de "Cidade Neon", premiado por sua atuação. "O Tiago Coutinho e a Iara Medeiros, da Academia Internacional de Cinema, fizeram um documentário sobre a vida das transexuais chamado 'Eu Existo', em que eu participei. Eles escutaram 'Cidade Neon' e decidimos fazer um curta-metragem, que concorreu com outros curtas a prêmios pela Filmworks. Eu ganhei o prêmio de Melhor Atuação”.
Recentemente ela lançou seu EP ("extended play") chamado "Ideais", cuja principal música que nomeia o CD combate a transfobia. "É engraçado que 'Ideais' é uma música que eu compus bem antes desse momento que estamos vivendo, envolvendo a 'cura gay', e a letra fala 'Nossa liberdade condenada como uma doença'. Com 'nossa liberdade' eu me referi também ao HIV, à nossa liberdade sexual, aos gays que eram marginalizados como 'grupo de risco de HIV', ou seja, os héteros não tinham AIDS, portanto?", questiona a cantora.
A cantora concedeu entrevista ao blog InCultura após o show gratuito que fez no evento, e contou sua história e como enxerga o fato de ser um espelho para as pessoas transexuais. Foto: Vinícius Barboza
Na canção "Ideais", Danna também faz críticas aos políticos. "Outro verso dela é 'vomitam tudo isso enquanto fazem festa no Congresso'. Enquanto a gente tá militando tem uma galera se divertindo. Tudo isso faz com que pensemos em desistir, eu como mulher, preta e periférica, pertencente à várias minorias. 'Ideais' tem inúmeras referências. O nosso ideal é esse, se manter firme, porque sempre vão vir pessoas contra, querendo retroceder".
O preconceito que sofre por ser preta se alia à discriminação por ela ser transexual. Danna porém, ressalta que a intolerância racial é ainda maior que a de gênero. "Primeiramente, quando as pessoas me olham, me enxergam como uma “pessoa negra”, e em seguida como "travesti". É muito f***. É mais complicado você ser uma mulher trans ou travesti e negra, do que ser branca. A pele branca traz consigo seus privilégios".
"Uma vez que somos condenadas como doentes e as pessoas não entendem a nossa identidade de gênero, expor nosso grito de existência e proposta de luta por igualdade, respeito e conscientização dos demais faz com que elas comecem a ter um espelho"
Para a cantora, é essencial para ela ser um exemplo para as demais pessoas transexuais e travestis. "Eu queria muito fazer isso para que outras pessoas trans tivessem alguém como referência. Eu não tive exemplos quando mais nova de mulheres trans ou travestis, cantoras, MC’s ou rappers. Hoje temos uma galera muito boa trans, drags, bissexuais cantando e fazendo valer a sua existência".
Ela acrescenta que essa representatividade garantida às trans faz com que elas vejam que é possível se fortalecer com as adversidades. "Uma vez que somos condenadas como doentes e as pessoas não entendem a nossa identidade de gênero, expor nosso grito de existência e proposta de luta por igualdade, respeito e conscientização dos demais faz com que elas comecem a ter um espelho".
O evento "Grafitaço com Quintesia" aconteceu na sede da União Estadual dos Estudantes de São Paulo (UEE-SP). Na imagem, a capa do EP "Ideais". Foto: Reprodução/Instagram "Danna Lisboa Oficial"
No atual momento em que opções culturais são fechadas devido à intolerância e ignorância, Lisboa diz que o sistema não quer que as pessoas pensem, não tendo elas outra saída senão seguir as regras impostas, e acrescenta: "Ficamos muito tempo calados, sendo oprimidos, e agora que estamos conseguindo esses espaços e direitos, eles acham conquistamos demais. O acesso à cultura faz as pessoas abordarem temas importantes que não discutimos na escola, na família. A arte faz isso, e quando a boicotam, já sabemos: é o sistema querendo agir".
Danna Lisboa finaliza dizendo aos artistas ainda sem reconhecimento, que realizem os seus trabalhos com um objetivo bem definido. "É preciso pensar qual o seu propósito com isso: te fazer bem ou fazer bem a outras pessoas? É fazer o mundo pensar? A arte é uma abertura do conhecimento para o próximo, é uma energia inexplicável, e ela tem que estar em todos os lugares".