Onde há ruínas, há a esperança de um tesouro
The Get Down: a série que mistura crítica social, música, humor e descobertas da adolescência
(AVISO: ESTE POST CONTÉM SPOILERS)
“The Get Down” conta a história do início do hip-hop e do auge do disco, traz personagens marcantes como Shaolin Fantastic e Mylene Cruz, dois dos três protagonistas. No começo, somos apresentados a Ezekiel Figuero, um jovem afro-latino que vive com a tia após a morte violenta dos pais. O ator Justice Smith interpreta Zeke, um garoto perdido, sem visão para o amanhã e frustrado ao mesmo tempo que transmite um personagem apaixonado, talentoso e fiel.
A narrativa começa quando Figuero conhece Shaolin e é apresentado a um mundo totalmente diferente, em que ele passa a imaginar um futuro dentro da música. Ambientada no South Bronx, a produção introduz personagens simbólicos e por meio deles critica a invisibilidade social do povo negro e latino dos Estados Unidos na época de 1970.
Além disso, também conta com uma mistura de ficção e fatos reais. Um exemplo é o apagão que deixou Manhattan todo no escuro e que é retratado na série juntamente com os problemas dos protagonistas. A combinação entre realidade e ficção não fica somente nos acontecimentos históricos, é também representada por meio de Grandmaster Flash, importante figura no começo do hip-hop americano e que é levado como um personagem significativo na série, essencial no desenvolvimento de Shaolin Fantastic.
Poder feminino
Mylene além de ser uma das protagonistas da série também é a principal figura de representatividade feminina. É filha de um casal porto-riquenho que comanda uma igreja evangélica e é nesse cenário que a crítica se desenvolve. A personagem demonstra a posição de uma jovem mulher latina em uma sociedade preconceituosa como a americana, além de lidar com conservadorismo a temporada toda.
O grande sonho de Mylene é ser uma cantora de disco famosa e, mesmo que seus pais considerem o estilo musical pecado, luta por seu futuro desde o início da série. Uma das cenas mais memoráveis de “The Get Down” é protagonizada por ela desafiando sua família conservadora dentro da igreja para poder ser notada por um produtor musical.
Mylene, interpretada por Herizen Guardiola. Foto: Reprodução
Ela também é o interesse amoroso do personagem principal, Zeke, mas foge dos estereótipos colocados em namoradoras de protagonistas. Com seu próprio arco, a garota resolve seus problemas sozinha e corre atrás de seu futuro com seus planos e vontades. Sua vida não gira em torno de Zeke e suas cenas na série quase nunca contam com a presença dele. Apesar de ser claro que ambos os personagens se gostam desde o começo, é por escolha de Mylene que o relacionamento dos dois começa mais tarde.
Colorismo norte-americano
Zeke é protagonista, a narrativa gira em torno de seus amigos, sua namorada e seus problemas. Ezekiel Figuero traz críticas importantes, como o privilégio de negros de pele clara em detrimento aos de pele escura, o racismo vivenciado por negros em faculdades e o quão importante a música pode ser para um jovem pobre.
O protagonista é criado pelos tios. A morte dos pais não é mostrada na série, mas é contada por ele em forma de poesia. No mesmo poema ele conta da primeira vez que compreendeu o que era ser negro em uma sociedade violenta, pobre e ignorada pelo governo e mídia.
Zeke, interpretado por Justice Smith. Foto: Reprodução
Figuero é quem reúne os irmãos Kipling com Shaolin para formar o grupo The Get Down Brothers, e a partir dele todo o enredo da série se desenvolve, porém isso não significa que a história dele seja resumida a seus amigos ou a sua namorada. Como negro de pele clara, Zeke teve oportunidades diferentes dos demais. É através disso que a série apresenta o racismo estrutural e a solidão de ser um dos poucos negros em espaços brancos. As cenas em que ele sai do Bronx contam com um contraste muito grande e com trilhas sonoras que demonstram as sensações do personagem. Sua relação com Shaolin, principalmente as brigas, são usadas de forma para demonstrar o privilégio que o Zeke tem sobre o amigo.
Shaolin Fantastic é dono da crítica mais pesada e mais necessária de toda a série. É por meio dele que o público é levado ao ambiente do crime, do tráfico e das drogas, mas também é através de Shaolin que fica claro o quão desesperador é estar dentro de uma sociedade violenta e sem oportunidades.
Shaolin, interpretado por Shameik Moore. Foto: Reprodução
A história de Shaolin é contada aos poucos ao longo da única temporada, ele é um personagem misterioso e cria conflitos entre os garotos do The Get Down Brothers. Primeiramente ele é um grafiteiro, depois se torna DJ e, por último, envolve-se com o crime, contudo, nenhuma de suas ações foram baseadas em escolhas pessoais.
O personagem também é envolto em um ar de fantasia proposital. Ele é conhecido como uma lenda entre os grafiteiros e um super-herói entre os amigos. Suas cenas contam com movimentos de luta e uma trilha sonora que lembra a de desenhos infantis. Essa atmosfera é produzida para transmitir ao público a ideia de que apesar de seus traumas, Shao é um adolescente como todos os outros da série, mas que criou esse ambiente místico ao seu redor para poder suportar o cotidiano violento.
Representatividade LGBT+
Marcos “Dizzee” Kipling não é um dos focos da série, mas é membro do grupo e projeta outras críticas sociais. Dizzee é grafiteiro, foi preso inúmeras vezes e suas falas quase nunca são compreendidas pelos amigos. Ele é constantemente chamado de estranho, maluco ou esquisito, suas roupas são as que mais se diferem das outras e suas unhas costumam estar pintadas. Com esse personagem, o estereótipo de uma masculinidade e força do homem negro é quebrada. Dizzee é sensível, se importa com os irmãos, tem uma visão artística e passa as noites desenhando nos trens.
Dizzee, interpretado por Jaden Smith. Foto: Reprodução
É com ele que vem a representação LGBT na série. O personagem se descobre bissexual na primeira temporada ao se apaixonar por Thor, também grafiteiro. Sobre o casal é possível perceber outra crítica: o relacionamento inter-racial e gay em uma sociedade racista e homofóbica. A cena do primeiro beijo dos dois é sem dúvidas uma das mais bonitas e inclusivas de toda a produção por contar com a participação de drags, travestis, gays e transexuais.
Um dos desenhos para interessantes do personagem é do grafite de um alien vestido com roupas formais indo para a ópera. Ao explicar tal marca, ele diz que o alien deseja chegar ao seu lugar de destino, mas nunca consegue porque algo sempre o afasta. Se considerarmos que Dizzee é um menino negro bissexual que é proibido de expressar sua arte, é possível entender que o alien é uma personificação dele e de seus iguais e que a ópera é a representação de uma vida melhor.
Apesar de toda a representação, a série foi alvo de diversas críticas por seu ritmo acelerado e por seus vários enredos e arcos de personagens. Porém, não teve a chance de consertar seus erros. “The Get Down” foi cancelada dia 7 de abril de 2017. Os fãs culpam a má divulgação da rede de streaming Netflix, pois apesar de ser sua série mais cara, houve pouca divulgação. A rede deu mais atenção para séries com protagonistas brancos como “13 Reasons Why” e “Stranger Things”, mesmo que essas tenham sido lançadas após “The Get Down” e ainda tivessem custado menos para serem produzidas. Não há chances para a série voltar, mas ela continua sendo uma das produções mais inclusivas já feitas pela própria Netflix e merece atenção.