Resiliência e amor pelo futebol
A trajetória da atacante Izadora e o machismo que acomete as jogadoras
Imagine ter um sonho e as principais virtudes para poder realizá-lo, mas não conseguir alcançar por conta de machismo. Essa é a realidade de inúmeras meninas brasileiras que apenas anseiam por jogar futebol e fazer o que gostam. Ao esbarrar nas dificuldades e sem tantos espelhos nos quais se inspirar – diferentemente dos homens –, muitas garotas desistem desse objetivo. Izadora de Barros Souza, entrevistada do InCultura, busca ir na contramão dessa narrativa.
A afinidade de Izadora pelos gramados aflorou-se muito cedo, e ela pôde contar com um pilar essencial para seguir sua trajetória: a família. Todos os familiares a apoiaram com o futebol. “Meu avô sempre me levava aos testes e jogos, ele ajudava com a condução. Tive ajuda também da minha avó, mãe e pai”, diz.
Izadora no lançamento do “Passa a Bola”, projeto que incentiva as jogadoras, idealizado por Luana Maluf. O evento aconteceu na quadra da ESPN, em São Paulo/SP, 16/03/18. Foto: Reprodução/Arquivo pessoal
Desde criança, Izadora escolhia o futebol em vez das bonecas. Como sua família não possuía condições financeiras para dar-lhe uma bola profissional, ela improvisava para estar próxima da sua paixão. “Já joguei com bolinha de papel na rua. Minha mãe amassava uns papéis e passava fita crepe para deixá-la dura.”
Em uma rua próxima de onde mora, em Cajamar/SP, jogava com meninos mais velhos que ela e começou a perceber o quanto gostava de praticar o esporte. “Podia estar fazendo muito sol, estávamos aqui nos divertindo. Brincávamos descalços e eu voltava para casa com o pé preto, toda feliz.”
“[...] Eles diziam: ‘Então você quer jogar com homens? Terá de jogar como um’. Em seguida, começavam a bater e chegar muito forte. Tenho muitas marcas, cortes na canela. Eu sofri.”
A experiência de jogar na rua fez com que vivenciasse os primeiros episódios de machismo em sua trajetória no futebol feminino, mesmo sendo criança. Embora tivesse o respeito dos garotos com quem jogava e tinha amizade, o mesmo não ocorria com quaisquer outros homens. “Sempre parava algum carro com um homem dentro e que ficava olhando. No bar em que meu pai trabalha, os frequentadores me chamavam de ‘maria-macho’. Eu ficava um pouco triste, mas por ser ingênua não sabia o quão grave era”, relata.
Em busca de lapidar seu talento e com apoio de seu avô, jogou futebol de salão com meninas mais velhas em um ginásio de esportes da sua cidade dos 8 aos 11 anos. Em seguida, passou com aptidão de 100% em um teste na escola de futebol “Meninos do Brasil”, ganhou uniformes, mochila e a oportunidade de treinar gratuitamente. Entretanto, como o próprio nome já diz, o clube era apenas de futebol masculino.
No lançamento de “Passa a Bola”, a atacante pôde conhecer Emily Lima, ex-treinadora da seleção brasileira e atual comandante do Santos. Foto: Reprodução/Arquivo pessoal
O fato de Izadora disputar campeonatos ao lado de garotos inviabilizava sua ascensão no time. Apesar de ter a confiança do seu treinador à época, sofria preconceito por parte dos árbitros. “Era comum o juiz falar: ‘Uma menina no meio de homens?’, ou então ‘Sendo menina, vai se machucar’. Eu só conseguia entrar nas partidas porque o professor do meu time os convencia de que eu jogava bem”. Devido ao machismo, ela jamais pôde começar um jogo como titular.
Havia também o comportamento machista dos adversários. Ofensas como “maria homem” eram proferidas. Dentro do campo, os jogadores tinham atitudes diferentes ao jogarem com ela. “Primeiramente eles não chegavam perto da bola e me davam espaço, menosprezando, inferiorizando. Eu ia pra cima, driblava, dava assistências, fazia gols. E então, eles diziam: ‘Então você quer jogar com homens? Terá de jogar como um’. Em seguida, começavam a bater e chegar muito forte. Tenho muitas marcas, cortes na canela. Eu sofri.”
“O jogo e as regras são as mesmas. A única diferença é que as mulheres são empáticas e possuem mais compaixão. É raro ver maldade nas jogadoras. Já no caso dos meninos, eles não podem se sentir inferiores.”
A versátil jogadora, que atua como atacante e também meio-campista, após um tempo, montou o time feminino das “Meninas do Brasil”. Como já havia jogado com garotas anteriormente, teve facilidade para organizar o elenco de atletas. Ela conta sobre o espírito de parceria que existia dentro do vestiário: “eu estava feliz se todas estivessem. Se víamos uma companheira caída, nos ajudávamos. Eu auxiliava levando alguma comida diferente para elas também. Sempre todas juntas”.
Um dos discursos machistas mais comuns que visam desmerecer o futebol feminino, é o de que por ser jogado por mulheres é “praticamente outro esporte”, se comparado ao futebol masculino. “O jogo e as regras são as mesmas. A única diferença é que as mulheres são empáticas e possuem mais compaixão. É raro ver maldade nas jogadoras. Já no caso dos meninos, eles não podem se sentir inferiores”, pontua a atleta de 19 anos. “A mulher tenta usar a estratégia em vez da força física. Os homens ao perderem na estratégia ou serem driblados, usavam a força”, completa.
Izadora em um dos seus momentos de descontração. Foto por João Pessoa Fotografia, via Instagram oficial da jogadora
Na pré-adolescência, Izadora passou pelas categorias de base do Corinthians, uma experiência que durou 4 meses. Continuou por muito tempo jogando bola na rua, até que aos 16 anos entrou no SERVA, clube da Vila Anastácio, bairro da zona oeste de São Paulo. Sua primeira passagem no time foi interrompida por uma lesão muscular na coxa direita. “Eu tomei uma pancada e até tentei voltar para o jogo. No primeiro chute forte que dei, caí no chão com muita dor”, relembra.
A contusão fez com que a jogadora ficasse parada. Ela retornou recentemente ao clube de Vila Anastácio, que é filiado da seleção brasileira, o que também alimenta os sonhos da jogadora. Sua meta a curto prazo é se profissionalizar. “Meu sonho é assinar com algum clube profissional, e no futuro ter mais visibilidade.”
“Eu só conseguia entrar nas partidas porque o professor do meu time os convencia de que eu jogava bem.”
Questionada sobre as barreiras que impedem as meninas de se tornarem jogadoras profissionais, Izadora cita a ausência de estrutura, visibilidade e investimento que existem no futebol masculino. Os três pilares mencionados pela atleta constroem um ciclo machista sobre o futebol no Brasil, que fecha as portas às garotas. O problema é tanto cultural quanto sistêmico, e infelizmente está enraizado no seletivo e discriminatório “País do Futebol”. “Muitas colegas minhas, que possuem mais dinheiro, já foram jogar na Espanha ou na China, já que aqui falta estrutura”, ressalta.
A atacante se diz otimista quanto ao futuro das mulheres no esporte. “O que eu puder fazer pelo futebol feminino, farei. Eu espero ajudar muito, inclusive ensinar crianças a jogar futebol. Imagino uma menina dizer: ‘Eu aprendi com ela, com uma mulher’.” Ela finaliza com uma mensagem às leitoras que sonham em jogar futebol profissionalmente: “seja você mesma, e se é o seu sonho, dê a cara a tapa e siga em frente. Ninguém vai correr atrás dele por você”.
Atualizado: Uma semana após a publicação da matéria, a atacante Izadora acertou sua ida ao Osasco Audax. Atualmente ela treina no clube para melhor condicionar sua parte física, e possui um acordo apalavrado para assinar futuramente com a equipe paulista.