A era dos festivais da música brasileira
Festivais musicais televisionados na década de 1960 se constituíram como grandes palcos de protestos e resistência à ditadura militar
Na transição entre as décadas de 1950 e 1960, o Brasil passou por um processo de expansão industrial que alterou drasticamente as rotinas das cidades que viriam a se tornar metrópoles. Os projetos liberais-populistas de Juscelino Kubitschek trouxeram ao país empresas estrangeiras e o perfil da classe trabalhadora modernizou-se à imagem dos centros urbanos norte-americanos. Após JK e um governo inacabado de Jânio Quadros, João Goulart sofre um golpe de estado e instaura-se o regime militar, em 1964. No campo midiático, a televisão se consolidava como meio mais influente na comunicação com a população, “tomando” o lugar do rádio. Nesse contexto, surgem os “festivais de canção”, concursos musicais que contavam com artistas populares do Brasil, realizados e transmitidos pelas emissoras de TV Record, Globo e a extinta TV Excelsior.
Com início em 1965 (Festival da Música Popular Brasileira, exibido pela Excelsior), e última edição em 1972 (VI Festival Internacional da Canção, transmitido pela Globo), a “era dos festivais” de música brasileira marcou um período de mudanças culturais, com o nascimento da chamada “MPB” e do movimento tropicalista, e de grande contestação social, incentivadas pelo cerceamento gradual da liberdade de expressão nos anos da ditadura. Dessa forma, os festivais tornaram-se, edição após edição, espaços de manifestação política dos artistas, que viam nas competições oportunidades singulares de mostrar suas músicas e comunicar suas mensagens.
Edu Lobo, a cantora Marília Medalha e o conjunto Momento Quatro performam “Ponteio”, canção vencedora do III Festival de Música Popular Brasileira, que incorpora elementos da cultura sertaneja. Foto: Reprodução/Musica Brasilis
Vozes importantes da música de protesto da época, como Chico Buarque, Elis Regina e Geraldo Vandré, despontaram e ganharam notoriedade com os festivais. As letras, diferente dos sambas leves e das canções simples de amor que marcaram a Bossa Nova e a Jovem Guarda, respectivamente, carregavam consigo metáforas e críticas ao governo militar. Além da música de protesto, a vanguarda tropicalista, ainda que suas canções não contivessem mensagens políticas explícitas, desafiava os padrões conservadores da sociedade.
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O mais notório dentre todos os festivais, o III Festival da Música Popular Brasileira, realizado em 1967 em São Paulo, contou com diversas apresentações memoráveis e com grande participação da platéia, numa demonstração de engajamento que até então não era presente. A letra política de “Roda Viva”, de Chico Buarque, e a narrativa construída por Gilberto Gil em “Domingo no Parque” foram alguns destaques.
O movimento tropicalista protagonizou embates com a classe universitária, pois Caetano Veloso e Gilberto Gil, principais idealizadores da Tropicália, mesclavam a estética brasileira com influências estrangeiras, o que provocava reação contrária entre a audiência, que majoritariamente não aceitava elementos do rock britânico nas canções. No III Festival Internacional da Canção (III FIC), em 1968, sob vaias, Caetano grita à platéia: “Mas é isso que é a juventude que quer tomar o poder? [...] Vocês não estão entendendo nada!”. Na ocasião, o cantor apresentava sua música “É Proibido Proibir”, inspirada nos movimentos estudantis franceses de maio do mesmo ano.
Geraldo Vandré discursa em defesa dos vencedores do III FIC, Chico Buarque e Tom Jobim, antes de apresentar “Caminhando” pela segunda vez na noite, acompanhado de um coro de mais de 20 mil pessoas. Foto: Reprodução/Rede Brasil Atual
Na mesma edição do festival, Geraldo Vandré, com sua música “Caminhando” (ou “Pra não dizer que não falei das flores”), foi responsável pelo momento de maior comoção daquele período da música brasileira. Disputando o primeiro lugar do concurso com “Sabiá”, de Chico Buarque e Tom Jobim, Vandré já tinha a vitória quase certa, tamanho o entusiasmo do público. Ainda que “Sabiá” carregasse teor político (“Vou voltar / Sei que ainda vou voltar / Para o meu lugar”), “Caminhando” tinha mensagem mais clara e contundente contra o regime militar e, portanto, maior apelo com uma juventude que ansiava por se sentir representada. Contudo, por conta de um telefonema de representantes militares para o então diretor da TV Globo, Walter Clark, proibindo que o prêmio fosse dado a Vandré, “Caminhando” fica em segundo lugar, causando a ira dos mais de 20 mil que estavam na platéia. A partir daí, a canção de Geraldo Vandré é proibida de tocar no rádio e na televisão, mas é cantada como um hino em protestos estudantis contra o regime militar.
Cerca de dois meses após o III FIC, é instaurado o Ato Institucional número 5 (AI-5), que, entre outros decretos, estabeleceu a censura prévia aos artistas e meios de comunicação. Chico Buarque vai para a Itália, Vandré foge do país, Gilberto Gil e Caetano Veloso são presos e exilados, e os festivais, naturalmente, perdem força. Porém, como o próprio Geraldo Vandré discursou em 1968, “a vida não se resume em festivais”, e o legado que esses, à época, novos nomes da música nacional deixaram transcende as competições que ocorreram durante os sete anos entre 1965 e 1972, e suas letras ressoam hoje como símbolos de liberdade democrática e manifestação popular contra tempos sombrios de nossa história.