Da lama ao caos
Acidente de Brumadinho expõe o alto potencial de risco à vida humana nas atividades pouco seguras de mineradoras
Há três anos, no município de Mariana, Minas Gerais, a barragem de Fundão rompeu-se e ocasionou o que é considerado o maior desastre ambiental da história do país, somado a um saldo de 19 mortes e a destruição do distrito Bento Rodrigues. Passando para 2019, no último dia 25, tragédia similar ocorreu em Brumadinho, também em Minas Gerais, em que a barragem, localizada na região do Córrego do Feijão, foi rompida pela pressão da água e dos rejeitos da mineração. No centro dos dois desastres: a mineradora Vale, responsável direta pela barragem em Brumadinho e, no caso de Mariana, através da Samarco, companhia que gere em conjunto com a anglo-australiana BHB-Billinton.
Diferente do desastre de Mariana, a barragem recém-rompida de Brumadinho ocasionou uma tragédia humanitária de proporções bem maiores. Até a publicação desse texto, foram confirmadas 150 mortes, além de mais 182 pessoas que continuam desaparecidas. Isso se deve, principalmente, à proximidade da barragem com o centro administrativo da Vale que ficava na região, onde estavam centenas de funcionários da empresa e outros terceirizados.
A atuação do Corpo de Bombeiros tem sido essencial para identificar as vítimas. Até agora, 142 corpos foram resgatados, segundo informações da Defesa Civil. Foto: Washington Alves (Reuters). Reprodução/Exame
Além das centenas de mortes e desaparecidos, o rompimento apresenta mais duas consequências graves para a população da cidade e para o meio ambiente, pois a lama contaminada com restos de minério de ferro atingiu as áreas povoadas de Brumadinho e o rio Paraopeba, eliminando sua biodiversidade. O município também deve passar por um período financeiramente complicado, já que sua receita anual dependia, em boa parte, dos royalties da atividade mineradora.
Após o acidente em Brumadinho, várias cidades que abrigam outras barragens com situações parecidas devem ficar atentas. De acordo com dados da Agência Nacional de Mineração (ANM), existem 218 barragens com dano potencial alto e 362 com baixo risco de rompimento. A que se rompeu em Brumadinho ocupava ambos os índices, assim como outras 185 barragens ainda ativas ligadas à mineração.
Só em Minas Gerais, segundo dados levantados pelo professor Bruno Milanez, do Departamento de Engenharia de Produção da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), e divulgados à Agência Pública, aconteceram cerca de dois acidentes por ano envolvendo barragens de atividade mineradora desde 2001, sendo que em pelo menos quatro deles foram registradas mortes (além de Mariana e Brumadinho, oito pessoas morreram em acidentes nas cidades de Nova Lima e Itabirito, em 2001 e 2014, respectivamente).
Razões para o desastre
Seguindo as características estabelecidas na Política Nacional de Segurança de Barragens, as grandes barragens podem ser consideradas como aquelas que possuem pelo menos 15m de altura e/ou 3 milhões de metros cúbicos de capacidade residual. Por serem estruturas bastante complexas e que demandam constantes vistorias, apontar a dedo cada um dos fatores que ocasionaram um rompimento é uma tarefa quase impossível. Porém, no caso de Brumadinho, ainda que as investigações estejam em andamento e a cidade sob lama, as razões mais evidentes estão relacionadas ao descaso da Vale em relação aos processos que deveriam atestar a segurança da barragem.
A própria estrutura da barragem rompida é considerada pouco segura, pois utiliza o método de “alteamento a montante”, mais arcaico e barato, onde os rejeitos são amontoados junto com a água em um reservatório composto por níveis. Segundo o presidente da Vale, há mais dez barragens da mineradora que utilizam essa técnica, todas em Minas Gerais. A promessa do executivo é que dentro de três anos todas elas terão seus sistemas de armazenamento substituídos.
Vista aérea da região afetada demonstra como o método de alteamento a montante é destrutivo, pois os rejeitos misturados com água se espalham com maior facilidade. Foto: Isac Nóbrega. Reprodução/El País
Além da estrutura, as vistorias recentes realizadas por uma empresa terceirizada contratada pela Vale são objeto de investigação pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ) e podem ter sido determinantes para o rompimento da barragem. Investiga-se a possibilidade de fraude ao atestar a segurança da barragem, ou então negligência por parte da direção da mineradora, que não tomou providências após engenheiros da TÜV-SÜD, empresa alemã contratada pela Vale para realizar as vistorias, detectar problemas na drenagem e erosão da barragem.
Assim como em Brumadinho, a barragem que rompeu em Mariana também teve uma auditoria contratada pela Vale para realizar a vistoria. Em entrevista ao El País Brasil, Ricardo Motta Pinto Coelho, ecologista e professor da pós-graduação em geografia da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), defendeu que é fundamental que o Governo Federal fiscalize a atividade das mineradoras, acabando com as auditorias terceirizadas. Na contramão, seis dias após o rompimento, o presidente Bolsonaro encomendou projeto que busca acelerar a concessão de licenças ambientais às mineradoras e outras empresas, enfraquecendo agentes públicos de fiscalização.
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A exemplo das recentes movimentações do Governo Federal, o Governo do estado de Minas Gerais, mesmo após o caso de Mariana, também tem contribuído para que empresas como a Vale operem da mesma forma. Apenas para citar exemplos recentes, um projeto de lei que visava tornar a regulação às atividades das mineradoras mais criteriosa foi reprovado pela Assembleia Legislativa do estado. Além disso, cerca de um mês antes da tragédia de Brumadinho, foi realizada uma reunião extraordinária na Câmara de Atividades Minerárias de Minas Gerais, que resultou na concessão de licença à Vale para a continuidade das operações na Mina do Córrego do Feijão, exatamente o local em que a barragem foi rompida.
Consequências para a Vale
Por enquanto, a Vale sofreu alguns déficits financeiros após o acidente em Brumadinho: foi multada em 250 milhões de reais pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e teve 11 bilhões congelados pela Justiça de Minas Gerais para garantir assistências e reparação de danos às vítimas. Lida também com constantes baixas no mercado internacional e forte pressão de acionistas estrangeiros.
A diretoria da empresa, porém, não corre riscos de destituição a depender do Governo Federal, segundo afirmou o ministro da Casa Civil Onyx Lorenzoni. O Governo brasileiro é um de seus principais acionistas e detém “golden shares”, ações que dão poder de veto para algumas decisões. Esse sistema foi implantado à época da privatização da Vale, em que o Governo Federal não tinha intenção de perder totalmente o controle sobre a antiga estatal.
Em contrapartida à conduta cautelosa do Governo, um grupo de acionistas minoritários pediu ao conselho administrativo da mineradora que os atuais gestores fossem afastados, alegando que sua manutenção compromete as investigações acerca do desastre e eventual responsabilização pelos danos humanos e ambientais.