Resistência camponesa na ditadura civil-militar
Vítima de violenta repressão, o campesinato ainda luta para ter sua memória reconhecida
A luta camponesa por terra e direitos trabalhistas, contra a exploração e a concentração de riquezas, carrega um histórico de incessantes conflitos, com períodos sombrios de intensa repressão organizada e articulada entre agentes privados (que, a depender do período, assumem a forma do coronelismo e dos latifundiários, ou dos empresários e grandes capitalistas) e o próprio Estado. Afastado dos grandes centros urbanos e, portanto, da imprensa e da opinião pública, o campesinato, em toda a sua história, é massacrado pelas esferas de poder reacionárias, sem ter força igual para reagir ou um lugar de fala que garanta sua expressão enquanto classe.
Entre o período de redemocratização pós-Estado Novo, iniciada em 1946, até o golpe militar de 1964, o Brasil viveu um lapso democrático que abriu espaço para a participação popular e, durante a década de 1950 e nos primeiros anos da década seguinte, diversos movimentos que representavam os trabalhadores rurais nasceram, destacando-se três por sua amplitude nacional (uma vez que os outros movimentos eram localizados e atendiam à luta dos pequenos agricultores de regiões distintas): as Ligas Camponesas, a União de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (ULTAB) e o Movimento dos Agricultores Sem Terra (Master).
Durante estes anos, trabalhadores rurais organizaram-se e formaram frentes que, com seguidas reivindicações, consolidaram a luta da classe camponesa, tornando públicas a miséria no campo e a exploração do agricultor, através de congressos que reuniam líderes de Ligas de diversos estados brasileiros e apropriação de terras abandonadas. Foi nesse período, portanto, que o campesinato articulou seus mecanismos de resistência.
Região Nordeste foi um dos centros das reivindicações camponesas. Foto: Reprodução/Brasil de Fato
Antes do começo da ditadura civil-militar e enquanto João Goulart ocupava a presidência, a sindicalização de trabalhadores rurais foi regularizada e a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), criada. Com essas duas medidas, os movimentos a favor da reforma agrária intensificaram-se, fazendo com que a elite que dominava a estrutura fundiária começasse uma forte retaliação contra o campesinato. Em um dos episódios mais emblemáticos desse processo (e uma das razões que consolidaram o golpe de 1964), o presidente João Goulart discursa em defesa das reformas de base (entre elas, a agrária), em 13 de março de 1964. Jango foi deposto 18 dias depois.
Enquanto a repressão urbana se intensificou após o AI-5, em 1968, a repressão do regime militar no campo tomou toda a sua força logo após o golpe, quando as milícias formadas pelos latifundiários passaram a receber apoio do próprio Estado. Apoio que ia da simples “vista grossa” para os assassinatos de camponeses (o Estado reconhece apenas 29 dos mais de mil homicídios e desaparecimentos de trabalhadores rurais durante a ditadura, de acordo com dados do relatório final da Comissão Camponesa da Verdade), até a presença de militares em desapropriações de terras, sessões de tortura, e participação direta e. mortes e desaparecimentos de lideranças camponesas.
Além da relação simbiótica entre Estado e latifúndio na repressão violenta, o próprio regime interveio presencialmente em diversas organizações sindicais e federais, ao fraudar eleições internas, nomear representantes próprios para presidir órgãos nacionais como a Contag, e cassando direitos políticos de líderes dos movimentos, enfraquecendo-os.
Leia também:
Segundo relatório divulgado em setembro de 2012 pela Secretaria de Direitos Humanos (SDH), 1996 camponeses foram mortos ou desapareceram entre 1961, período pré-ditatorial, e 1988, após a redemocratização. Outra característica única da repressão no campo, ainda segundo os dados da SDH, os anos que compreenderam o maior número de homicídios foram os de reabertura política após a lei de anistia, entre 1979 e 1985; Nesse intervalo, 436 camponeses foram assassinados, das 756 vítimas dos anos da ditadura.
Similar ao que ocorreu no começo dos anos 1960, é possível compreender estes dados da SDH como mais uma forte demonstração da retaliação das forças conservadoras brasileiras contra a revolução e resistência no campo, pois foi nesse momento que organizações como a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) começaram a atuar (os primeiros embriões do MST surgiram com a atuação da CPT na região sul do país, e a primeira articulação ficou conhecida como Acampamento Encruzilhada Natalino).
Primeira ocupação organizada por famílias do MST, na Fazenda Annoni, 1985. Foto: Reprodução/Comissão de Direitos Humanos de Passo Fundo
Ainda que estejam entre os principais alvos do regime militar, os camponeses protagonizaram importantes atos de resistência e luta durante a ditadura, especialmente no Nordeste, onde foram organizadas as principais reuniões entre as Ligas Camponesas e espaço de atuação de importantes militantes como João Pedro Teixeira e Elizabeth Teixeira (casal cuja história foi eternizada no documentário ‘Cabra marcado para morrer’, de Eduardo Coutinho), Gregório Bezerra, entre outros.
Subjugado pelo silêncio e clandestinidade impostos pelos militares, o campesinato não tem sua memória reconhecida, e segue sendo explorado através de um sistema fundiário brutalmente desigual. Casos como do livro “Retrato da Repressão Política no Campo: Brasil - 1962-1985: camponeses torturados, mortos e desaparecidos”, de Ana Carneiro e Marta Cioccari, representam esforços isolados de reavivar e trazer à luz as histórias de luta e resistência vividas pelo trabalhador no campo.
Ainda na introdução do livro, as autoras descrevem a importância de tornar público a violência sofrida pela população rural: “... resgatar a memória do que ocorreu no campo durante o regime militar é contar uma história que, pelas características próprias à área rural, foi construída em grande medida no anonimato, em geral ignorada pelos documentos oficiais. Não apenas devido às experiências de clandestinidade política, como ocorreu na área urbana, mas, sobretudo, porque foi ocultada sob o cotidiano de uma histórica relação de opressão e humilhação dos representantes do latifúndio contra os lavradores, os posseiros, os trabalhadores da terra. A violência política no campo desenvolvera-se, muitas vezes, longe dos instrumentos institucionais legais e da consciência de classe que faria valer os direitos humanos.”